Escritor da Depressão

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    Lucy e os Beija-Flores

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    allukaz


    Mensagens : 1
    Data de inscrição : 10/01/2014

    Lucy e os Beija-Flores Empty Lucy e os Beija-Flores

    Mensagem por allukaz Sex Jan 10, 2014 8:01 am

    Existem muitos que até hoje não acreditam nas maluquices supostamente inventadas por mim, mas há de certo alguém que vá acreditar nos piores horrores que passei naquela primavera. Era primavera, as flores do jardim ficavam repletas de beija-flores, de todas as cores. Tinha um em especial que minha filha adorava. Era azul, muito forte, com as asas pequenas e o bico longo. Lucy parecia combinar com o beija-flor. Seus olhos azuis, grandes e vibrantes, contrastavam com as penas brilhantes do beija-flor. Todo dia, as duas horas da tarde, o beija-flor visitava uma rosa das pétalas caídas, quase morrendo. Lucy sempre se esforçava para admirar a pequena criatura, que parecia flutuar pela leve brisa que sempre teimava em visitar o jardim repleto de tulipas, rosas e pés de limão. Depois de olhar o beija-flor, ela chamava uma das empregadas que a guiava pelo corredor da parte de fora da casa.
    Era um corredor todo rosa, com uma porta do lado esquerdo. Ele percorria toda a extensão do jardim, que sempre era muito elogiado por Lucy enquanto a sua cadeira de rodas ia em direção a porta. Sempre falava que o jardim estava ficando mais bonito a cada dia, principalmente depois da presença do beija-flor se tornar tão constante. Com a saúde cada vez mais debilitada, Lucy sempre tentava ser otimista em relação ao seu futuro. Fazia questão de comparecer a todas as refeições e, sempre que podia, ela mesma se servia. Gostava de ervilha, carne de porco e suco de maracujá. Depois da doença, só sobraram as ervilhas. Muito fraca, ela tentava recusar ajuda pra comer. Seus pobres olhos azuis pareciam ter esperança diante daquele mar de matança que flutuava pela mesa de jantar e queimava a sua boca rosada, pequena e delicada.
    Depois das refeições, ela tentava ir pra cama sozinha. Pedia licença, pois era sempre muito educada, então agradecia a refeição e se retirava da mesa. Seus braços não tinham força suficiente para guia-la pela casa, então a empregada colocava as mãos nos seus ombros, muito delicadamente, e falava que levaria até onde ela desejasse. Lucy sempre pedia para que a levassem até o seu quarto, pois estava muito cansada e queria dormir. Seu quarto ficava no segundo piso da casa, era o sexto dos vinte e cinco cômodos.
    Para chegar ao segundo piso, era precisa transpor uma escada em espiral com trinta e cinco degraus revestidos de uma madeira australiana, que eu fazia questão de ter em todas as mobilhas da casa para mostrar a minha importância. Impossível de subir a escada por conta da cadeira de rodas, tivemos que mudar o quarto de Lucy. Eu vi a tristeza em seus olhos, pois o seu antigo quarto era grande, e tinha uma janela enorme que dava de ver toda a cidade e, segundo ela, a sua parte preferida dela(que nem realmente pertence a cidade). Era uma elevação na terra, um pequeno morro repleto de flores e beija-flores, uma espécie de jardim que parecia ser cuidado muito bem por um esplendido jardineiro. Ela ficava lá, por horas e mais horas, até tardar, olhando o jardim. As vezes ela dizia que via uma pequena pessoa cuidar do jardim, que ela chamava de “pequeno homem das flores”. Isso começou a acontecer depois da doença, então nem nos importamos muito com isso, fato esse que, como verão, irá se tornar em um tremendo arrependimento. Seu quarto tinha uma cama enorme, maior que a minha e da minha falecida esposa. Também tinha uma canastra, feita especialmente por encomenda para que tivesse entalhos de flores para alegrar minha amada filha. Uma pequena mesinha guardava alguns utensílios, e uma caixinha com jóias. Levamos toda a mobília para o quarto no piso inferior, porém Lucy pediu outra canastra.
    Dessa vez, ela queria uma que tivesse não só flores, mas também beija-flores. Fizemos como desejado e encomendamos uma canastra entalhada de flores e beija-flores, que pudesse abrigar todas as suas roupas; vestidos tão lindos que pareciam ser feitos da linha do próprio Senhor. Um velho marceneiro da cidade, de aproximadamente 90 anos, foi o encarregado de encomenda. Duas semanas depois do pedido, ele veio até a nossa residência e nos perguntou se queríamos uma canastra já feita, que ele falava ser mais antiga que ele. Pedi para ver a canastra, e ela exatamente do jeito que a minha filha desejava. Os beija-flores pareciam beijar uns aos outros, e desse beijo saía um coração formado pelas mais lindas flores existentes na Terra. Falei que eu queria sim aquela canastra, pois era de muito bom gosto. Levei a canastra ao novo quarto de Lucy, e senti que era muito pesada. Imaginei que seria pela madeira, que parecia vir de algum país ainda não conhecido pela minha pessoa. Tinha umas inscrições nas asas dos beija-flores, que pareciam estar escritas em uma língua ainda não decifrada por qualquer pessoa que eu consultei. Lucy adorou a canastra; arrumou as suas roupas nela com tanto carinho que parecia que a sua doença tinha se ido pelos seus cabelos de mel.
    Eu estive realmente enganado, a doença não tinha passado. Lucy, cada vez mais pálida, parecia ter os raios do sol atravessados pela sua carne. Duas semanas se passaram desde que a vi sorrindo pela última vez, que foi quando ganhou a canastra.
    Certa vez, a empregada me chamou até o quarto. Na cama, deu para ver uma pequena mancha de sangue, muito recente. Percebi que a situação de Lucy era muito pior do que imaginava, e chamei mais uma vez todos os médicos que estavam disponíveis na região. Quando examinada, Lucy mostrava um sorriso no rosto; não um sorriso de alegria, mas um sorriso que abalava o meu coração e fazia a minha cabeça tremer por dentro, enquanto imaginava a pior das hipóteses. Nenhum dos médicos descobriu a doença de Lucy. Eles me contaram que os seus olhos, já demasiados fracos, iriam perder a visão com o tempo e que, a sua pele, demasiada pálida, iria começar a ceder aos poucos. Lucy parecia ter visões todos os dias; Dizia que lhe traziam flores todos os dias, e que ela ficava muito triste por não saber quem era o gentil cavalheiro. Falei com a empregada, e ela confirmou que chegaram flores que eu confirmei mais tarde serem de alguém identificado como “O Pequeno Jardineiro”. Eram flores de um aspecto estranho. Tinham duas pétalas, uma preta e uma branca. As pétalas pareciam se beijar, uma a outra, como um casal enamorado por 500 anos. Todas tinham, também, dois espinhos. Esses se enrolavam no caule e desciam até a base da planta. Quando colocadas na água, morriam imediatamente. Nunca tinha visto tal espécie de tamanha imponência, parecia até que não gostava da água, mas gostava do ar. Seria uma nova espécie ainda não catalogada ou não conhecida por um senhor de 60 anos, amante das flores, da natureza e dos animais?
    Lucy dava um sorriso a cada dia, com cada flor recebida. Isso durou 4 semanas , até a pior crise da minha amada filha. Não abria os olhos, não mexia a boca, os braços, mas estava respirando. Parecia ter se juntado ao lençol, de tão branca que era sua pele. Seus cabelos pareciam brancos como a neve , envoltos por manchas de sangue que saíam de olhos cobertos por um poço de sombras que reinava sobre a pele. Eu já tinha perdido a esperança há muito tempo, e o meu coração se afundava em amargura quando os meus olhos entravam em contato com a triste figura da minha filha, imóvel, no leito de morte. Percebi ter contraído a loucura, pois dia sim dia não, escutava passos vindos do quarto de Lucy, como se a minha filha tivesse voltado a andar e fosse abrir a porta do meu quarto e me presentear com um delicioso “bom dia”. Parecia que, nos cantos mais escuros da casa, flores do tipo daquelas de duas pétalas que morriam ao serem afogadas nas mais límpidas águas. Essas flores pareciam brotar das paredes, se estendendo até a minha cama, formando uma gaiola de flores que derrubavam um líquido negro que derretia tudo que tocava. A cada dia que eu acordava, via diante dos meus olhos a triste realidade. Estava esperando pela morte de minha filha e, logo após, a minha.
    Todos os dias, beijava a minha querida filha, e, quando me aproximava e dava-lhe um beijo em sua bochecha, sentia tamanho frio correndo pelas minhas veias que pensava ter sido congelado por algum tipo de feitiçaria. Em um sábado a tarde, que não teve a visita dos beija-flores, fui dar o seu beijo diário. Chegando na porta, me deparei com uma cena jamais imaginada por mim; como se fosse o pior dos meus pesadelos, minha filha não estava lá. Na cama, via-se uma mancha de sangue que cobria o lençol por si todo. A janela não estava aberta, e não havia sinal de movimento.
    Não sabia o que tinha acontecido, e a minha mente não conseguia pensar. Existia uma luz no quarto, uma luz azul. Olhei para trás e, na canastra, havia um brilho que emanava tamanho frio que os meus membros foram congelados. Com esforço, cheguei perto e abri. Nela, tinha várias flores, do tipo que Lucy recebeu por certo tempo e que a deixavam muito feliz. Embaixo dessas flores, parecia haver alguma coisa. Tirei as flores e, pouco a pouco, descobri um ser que jamais tinha visto antes. Era um ser de aparência humana, com um corpo muito pequeno, com cerca de um metro e 20 centímetros. Seus braços tinham aproximadamente um metro, enquanto suas pernas apenas 10 centímetros. Tinha uma barriga enorme, e parecia ter se alimentado recentemente. Dormindo, parecia até que estava morto. De repente, virou o pescoço em minha direção e me desferiu um olhar terrível; era tamanho medonho que desejei morrer na hora. Seus olhos eram completamente azuis, como se fosse cego. Seu nariz parecia ser afundado na pele, e a sua boca ocupava todo o resto do contorno de seu rosto: ia do começo da cabeça até onde deveria ser o queixo. Ele também sorriu, como se tivesse gostado de me ver. Seus dentes eram vermelhos, vermelhos de sangue; Deixavam escapar gotas e gotas, que sujavam a sua pele, que tinha um tom amarelo, um pouco marrom, queimado. Sorrindo mais ainda, pulou sobre os meus ombros, apoiando unhas gigantes que se apoiaram em mim, vindas de dois dedos enfincados em uma mãozinha miúda. Seus pés também tinham dois dedos, com unhas de tamanho igual. Chegou a janela e parou; me observou por um tempo, até a sua barriga começar a se mexer. Parecia existir algo lá; algo que se debatia com tamanha força que parecia que iria rasgar a pele do ser que gritava de agonia. Gritos tão horríveis que tive vontade de arrancar as partes do meu corpo responsáveis pela audição. Ele abriu a boca, uma boca de tamanho tão anormal que engoliria uma melancia inteira. Ele vomitou o que tinha na barriga: era a minha filha. Não a minha filha inteira, mas a sua pele. O ser tinha chupado os órgãos e as tripas de minha filha, e tinha me deixado os restos do seu alimento. Parecia um monte de panos jogados fora por alguém que não os queria. A demoníaca figura parecia ainda estar em agonia: Seu corpo estava mudando. Seus braços se contraíram e depois expandiram, enquanto ele arrancava a própria pele, que dava lugar a outra: uma pele branca e límpida. Tomou a forma de minha filha, Lucy. Carregava outro sorriso, que penetrava nos confins do meu coração e me apertava a alma. Se jogou pela janela e, como um último ato, apontou para a canastra. Do teto do quarto, começaram a cair penas negras que me cortavam a pele ao contato. Formavam um mar de temor, uma nuvem de terror que caía sobre a minha cabeça e me destruía aos poucos. Apostei a minha vida para chegar ao maldito objeto, que era protegido pelas penas que me sufocavam, me prendiam, me impediam o passo. A atmosfera ficara escura, e eu via um outro brilho; um brilho azul. Vinha da canastra, que parecia querer me dizer alguma coisa. Removi o seu escudo de horror, e vi os escritos nas asas dos beija-flores.Estavam legíveis, e finalmente pude lê-los:
    “Em um sábado a tarde, quando os beija-flores não retornarem, o filho do diabo se alimentará dos sonhos da inocência. As penas negras cortarão a felicidade e matarão o medo que jaz nas pessoas.” Comprei a morte de minha filha, a casa do filho do Diabo. Matei a mim e a minha amada, e mergulhei em um mar negro de onde nunca mais vou voltar.

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