Escritor da Depressão

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    E Se... [Conto novo do blog "Letras Ao Mar"]

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    Fabio D'Oliveira


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    Mensagem por Fabio D'Oliveira Dom Abr 13, 2014 10:23 pm

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    Fico observando o céu enquanto caminho, as nuvens cinzentas representam a inabalável chuva que está por vir. Que pena, adoro os dias ensolarados; a sensação morna, a brisa refrescante e o realce das cores... Ora, do que estou reclamando? Já tive seis belos dias iluminados, já deveria estar satisfeito com isso.
             
    Essa estrada de terra parece não ter fim, faz horas que caminho reto, sem desvios ou encontros com outras pessoas. Amo a natureza selvagem, especialmente lugares como essa pequena floresta, mas não me sinto confortável quando penso que posso me perder. Haha, um pensamento bem estranho para um andarilho — geralmente aventureiros e valentes.
             
    A água me toca.

    Pingos começam a cair, devagar e devagar, até ganharem um pouco de força. Olho ao redor, procurando um lugar para me esconder, mas não acho nada. Decido correr um pouco, talvez eu encontre uma árvore de bom porte para me encostar.
             
    — Arf... Arf... Arf...
             
    A mochila bate forte contra minhas costas. Estou faminto e minhas pernas começam a falhar, volta e meia tropeço em algum buraco ou em mim mesmo. Deveria ter aproveitado melhor o tempo sem chuva e comido um pouco.
             
    — Arf... Arf... Arf...
             
    Ao longe, na beirada do caminho, vejo uma grande árvore, que se destaca muito das outras, e uma pessoa sentada debaixo dela, em sua grossa raiz. Irei me aproximar.
             
    — Arf... Arf... Arf...
             
    É uma senhora de idade que está lá. Estranho... Paro perto do tronco, curvado e ofegante.
             
    — Olá... Arf... Posso sentar do seu lado? Arf... Essa chuva me pegou de surpresa, haha...
             
    Ela me fita por alguns instantes com seus olhos caídos e amendoados. Fico arrepiado e desvio o olhar.
             
    — Pode sim, jovem.
             
    Sento-me timidamente e passo a observar a chuva, que está em seu ápice. O frio me ataca, porém, a beleza da enxurrada me encanta. A estrada está ficando enlameada e sinto seu cheiro forte. Amo-o. A melodia é linda, tendo os mais variados timbres; consigo, inclusive, escutar baixas batidas metálicas, talvez tenha alguma construção por perto.
             
    A casa dela?
             
    Olho de soslaio para a senhora. Seu vestido é elegante, de cor bege e com várias estampas de flores, assim como seu chapeuzinho de palha, que é rodeado por uma fita rosada. Inclusive, sinto cheiro de biscoito amanteigado. Será que vem dela? É esquisito imaginar uma pessoa idosa morando por aqui.
             
    — Pode fazer a pergunta, não tem nenhum problema — fala ela, de súbito.
    — Ah...?
             
    Penso um pouco e vejo que realmente tenho uma pergunta em minha mente. Digo:
             
    — Você mora por aqui?
    — Sim e não — abre um gentil sorriso e continua. — Faço de minha casa os lugares que precisam de minha presença.
             
    Não entendo suas palavras, mas decido que não insistirei.
             
    — Qual o seu nome, jovem?
    — Derek. E o seu?
    — Belmira. É um prazer enorme te conhecer.
    — Errr... Igualmente.
             
    Viro o rosto novamente, não consigo manter contato visual com ela por muito tempo...
             
    — Eu não gosto de dias chuvosos — diz a senhora, enquanto aperta seus braços enrugados contra o peito.
    — Por quê?
    — Os climas conseguem reacender certos estados de espíritos, não sabia? Assim como um dia ensolarado dá-nos alegria, momentos como este trazem à tona tristezas.
    — Sente-se triste?
    — Não.
    — Então por que não gosta de dias chuvosos? — pergunto um pouco confuso.
    — Jovem, meu trabalho não é sentir por mim, e sim pelos outros.
             
    Fico quieto, encarando-a e esperando alguma explicação.
             
    — Sou a responsável pela eliminação de angústias internas.
    — Ahn...?
    — Derek, você gostaria de ver o futuro que nunca viu e que nunca sentiu?
             
    Belmira estende seu braço, revelando três fitas. A primeira é verde, com a palavra “Lembranças” gravada nela. A segunda possui uma cor avermelhada e duas palavras, “Decisão Inversa”, destacam-se em sua superfície. Por fim, a última é amarela, tendo a frase “O Que Você Nunca Teve” embutida em seu fraco tecido.
             
    — Arranque fora o verde.
             
    Devo mesmo fazer isso? Hesito por breves instantes, porém, acabo cedendo para a curiosidade. Alcanço a fita, passando a mão nela e a rasgando com facilidade.
             
    — ...
    — ...
             
    Nada acontece, a chuva continua a cair e a senhora a sorrir. Entretanto, aos poucos, um odor começa a envolver o ambiente.
             
    Tudo para.
             
    Não escuto mais a enxurrada e o frio se foi. Olho ao redor, parece que o tempo parou. Esse cheiro... eu o conheço... e muito bem!
             
    — Está sentindo? — questiona Belmira.
             
    Rosas Também Choram. Esse é o nome deste perfume, um nome conhecido e amado...
             
    — Sim, de onde ele vem?
             
    A velha aponta para minha cabeça e diz:
             
    — Do seu interior.
             
    O odor muda, agora me arrepio ao lembrar das refeições de meu passado. Frango assado com batatas. Lasanha à bolonhesa. O macarrão especial dela. Haha, lembro-me muito bem daquela época, besteiras eram exclusividades de meu cardápio; nunca fui de comer verduras ou frutas antes de começar a viajar.
             
    — Como isso é possível? Como posso sentir estes cheiros?
             
    Estou maravilhado, mas também assustado.
             
    — Pronto para partir a próxima fita? — pergunta ela, ignorando minha indagação.
             
    Não preciso nem pensar sobre isso.
             
    — Sim...
             
    Repito o gesto anterior, no entanto, o segundo tecido resiste um pouco mais. Arranco-o fora.
             
    E parte da floresta começa a sumir.
             
    As plantas que estão na nossa frente começam a virar pó. Quando encostam no chão, reproduzem o som da chuva. Belmira se levanta, ajeitando seu vestido e dando-me a mão.
             
    — Vamos?
    — Vamos.
             
    Atravessamos a estrada e entramos no novo caminho, seguindo as plantas que continuam se esfarelam adiante. Andamos, andamos, andamos.
             
    Estranhezas.
             
    Na verdade, não sinto o tempo passar, mas tenho a impressão que estou horas caminhando. Ao nosso redor, a floresta continua, na nossa frente, uma trilha incomum, o que me causa arrepios. Paramos e a senhora se desvencilha de mim.
             
    Um burburinho começa a se formar. Esquisito, não tem mais ninguém por aqui. Parece, inclusive, o típico som de um aeroporto. Mais na frente, perto de Belmira, duas sombras aparecem.
             
    — Chegamos — anuncia ela, acenando para eu me aproximar.
             
    Adianto-me e paro diante os vultos. Começo a escutar uma conversa.
             
    — Por que você irá? — pergunta uma voz feminina.
    — Eu já te disse, é meu sonho viajar pela Europa. Sempre foi... — responde outra voz, agora masculina e já conhecida.
    — Mas... E eu?
    — Thaís, já conversamos sobre isso. Se você quiser, pode me esperar. Não ficarei com ninguém durante minha viagem. Mas se não quiser, entenderei.
    — Isso não é justo...
    — Adeus — uma das sombras se afasta, enquanto a outra cai em prantos.
             
    Eu conheço essa cena. Foi o dia em que me despedi de minha ex-namorada, Thaís. Foi um pouco antes de virar andarilho, fiz uma viagem a pé pela Europa e amei a experiência, adotando logo em seguida o estilo de vida que levo agora.
             
    — Como seria este momento se você cedesse aos seus sentimentos amorosos?
             
    As sombras retrocedem, igual acontece quando voltamos um filme. Recomeça.
             
    — Por que você irá?
    — Eu já te disse, é meu sonho viajar pela Europa. Sempre foi...
    — Mas... E eu?
    — E você?
    — Sim... Como eu ficarei?
    — ...
    — E como ficarão nossas lembranças? Lembra-se de nossa futura casa?
    — Dois andares, com um extenso quintal e um belo jardim de flores.
             
    A sombra de Thaís começa a soluçar.
             
    — Sim...
    — E cachorros, todos vira-latas, pois odiamos ver animais sofrendo na rua. Iríamos resgatar quantos fosse possível.
    — Não vamos ter filhos biológicos, vamos adotar.
    — Sim, sim...
             
    Algo está entalado na minha garganta... Que sensação é essa?
             
    — Derek... Me abraça?
             
    Minha sombra dá meia volta e, sem hesitar, agarra Thaís. Intensa e forte, certa angústia se abate sobre mim.
             
    — Desculpe-me, meu amor, vamos para casa...
             
    Os vultos se dissolvem no ar e são levados pelo mesmo. Fico quieto, perplexo, que cenas foram aquelas?
             
    — Sente falta dela?
    — Agora sim...
    — Não sentia antes? — pergunta Belmira, demonstrando surpresa no tom de sua voz.
             
    Não respondo e também não a encaro, seus olhos são insuportáveis, ferem minha alma. O que ela quis dizer com aquilo?
             
    — Quer rasgar a última fita? Quer conhecer o que você nunca teve?
             
    Eu tenho escolha? Não, não tenho, já sou prisioneiro da curiosidade, tenho que ir até o fim. Caminho até a senhora, desta vez sem medo, e puxo o tecido com força. Quase não consigo arrebentá-lo.
             
    Tudo, digo e repito, tudo voa para longe, impulsionados por uma ventania. As árvores, a terra, o céu, a vida, tudo some. O branco é a única coisa que resta. Olho ao redor, um pouco intimidado, mas não derrotado, e questiono:
             
    — E agora, aonde vamos?
    — Lugar algum, jovem, espere alguns segundos e tudo virá até você.
             
    O som da chuva volta, olho para trás e vejo uma nuvem de poeira se aproximar. Ela para há alguns metros de nós e um furacão se forma. Roda, roda e roda; começa a sumir aos poucos, transformando-se em algo...
             
    — O que é isso?
             
    Um quintal florido, uma casa grande e meia dúzia de cachorros. Tudo isso aparece num passe de mágica. O restante do pó dá forma à minha casa dos sonhos. Dos sonhos de Thaís.
             
    Não tenho reação... É bonito demais...
             
    — Quer entrar?
             
    Sem perceber, já estou entrando no terreno. Os animais veem até mim, serelepes e felizes ao me ver. Nomes aparecem em minha cabeça.
             
    — Jasper... Pretinha... — falo enquanto me agacho e começo a acariciá-los. — Hilda...
             
    — Vocês tinham tudo planejado, não é? — Belmira está do meu lado, com seu característico sorriso.
    — Acho que sim...
             
    Levanto-me e atravesso o jardim, observando cada canto do mesmo. Existem muitos lírios aqui, a flor favorita de Thaís. Paro diante a porta de madeira fina e respiro fundo, ainda sinto certo engasgo na garganta.
             
    Entro em meu sonho.
             
    Fico horrorizado e encantado, tudo ao mesmo tempo. Ando pela casa inteira, checando cada aposento. Todos os móveis eram antigos, porém, conservados. O chão brilha e até consigo deslizar sobre ele. As paredes, todas pintadas com detalhes únicos, ora eram formas geométricas, ora eram plantas orientais, como bonsais — outra paixão de Thaís. Tapetes, ornamentos, acessórios, utensílios domésticos; tudo era de origem exótica.
             
    “Exatamente como imaginamos...”, penso.
             
    O choro de uma criança envolve a moradia.
             
    — Vem do andar de cima...
             
    Sigo os gritinhos e acabo encontrando uma porta nova, embutida no final de um corredor.
             
    — Isso não estava aqui antes...
             
    Abro e encontro um quarto. Não há nada nele, apenas um berço em seu centro.
             
    — O cômodo de seu filho.
             
    Viro-me, assustado, e vejo que Belmira está atrás de mim. Adentro o aposento e caminho até a criança.
             
    — É lindo...
    — É sim.
             
    Essa voz... Thaís? Na minha frente, do outro lado da cama, está ela. Seus cabelos ondulados e morenos caem até sua cintura. Seus beiços me convidam, como sempre fizeram. O sorriso sereno continua intacto. O olhar, terno e índico, envolve minha alma.
             
    — É uma benção em nossas vidas, não é, Derek?
    — ...
    — Todos nossos sonhos se realizaram...
    — ...
             
    Sinto uma dor aguda em meu coração. Estou amando isso, muito. Mas... Não é possível, isso não é real. É falso.
             
    — Eu amo a vida que tenho, principalmente porque tenho vocês dois nela.
    — Para...
    — O que foi? — pergunta Thaís, começando a se aproximar de mim.
    — Sai daqui...
             
    Dá a volta, para do meu lado e pousa a mão em meu ombro.
             
    — Sai! — grito.
             
    Empurro-a. Thaís cambaleia um pouco e tropeça, caindo no chão. Porém, ao encostar no mesmo, acaba se transformando em pó. Urro.
             
    Perco o controle.
             
    Chuto o berço para longe, saio daquele maldito quarto e começo a destruir tudo que pertence a essa casa. Nada é real... Nada! Soco, dou pontapés, grito sem parar. Saio ao ar livre, deixando toda a minha frustração sair em forma de um longo berro.
             
    Agora sei o que está entalado em minha garganta. Eu quero chorar. E é isso que começo a fazer. Abaixo minha cabeça e banho a terra falsa com minhas lágrimas. Sinto uma enorme dor, não sei distingui-la, não sei de onde vem.
             
    — Por que está chorando, Derek?
             
    Ergo o rosto e vejo Belmira. Ela é a autora disto tudo. Maldita!
             
    — Você... Quem é você?
    — Ora, eu já te disse, lá na estrada de terra onde nos conhecemos. Sou a responsável pela eliminação de angústias internas. Suas angústias.
    — E o que diabos isso quer dizer!?
    — Sou a Senhora do Futuro Inexistente. Eu existo apenas para limpar as pessoas de suas dúvidas. Durante nossa vida, caminhamos por uma trilha tempestuosa e cheia de desvios. Eu apenas mostro como seria a vida de alguém se suas atitudes e decisões fossem diferente.
    — E daí? Eu não queria saber isso! Por que apareceu para mim e me mostrou tudo isso!?
             
    Belmira continua sorrindo gentilmente, não sei se isso me acalma ou me deixa mais irado.
             
    — Derek, eu não posso forçar ideias. Na verdade, só te mostrei o que você queria saber. Em quem você pensa quando observa a noite estrelada? Em quem você pensa quando vê um casal numa praça? Em quem você pensa quando encontra um vira-lata na rua? Quantas vezes você se questionou: E se...? Não é o tempo todo, mas é o bastante para atormentá-lo.
    — ...
    — Aqui está a sua resposta, a vida que vocês iriam ter. Duas pessoas talentosas na arte de amar, juntas para sempre.
             
    É verdade, é verdade... Eu penso muito na Thaís, mas não me sinto mal com isso. Ou me sinto? Eu não sei.
             
    — Somente o tempo não pode ser recuperado. Ele passa e nunca mais volta.
             
    Admito. Meus últimos meses foram terríveis por causa de meus pensamentos. Meu orgulho, assim como nesta situação, falou mais alto naquele dia. Queria ficar, mas não queria abrir mão do meu sonho de infância. Não consegui enxergar que poderia construir novos objetivos, e, quem sabe, viajar junto com ela. Abri mão de tudo por nada. Como sou egoísta...
             
    — Vejo que você já entendeu o que eu quis mostrar — ela parece ler minha mente. — Jovem, apesar de não podermos voltar no tempo, podemos mudar o rumo de nossa vida. O tempo todo. Você fez isso uma vez, não precisa hesitar para fazer outra vez.
    — Belmira... Será que ela está vivendo bem? Com uma nova família?
    — Não sei, Derek. Mas posso te dizer uma coisa... — a senhora ajeita seu chapéu de palha, mexe em seu colarinho e abre um belo sorriso — Eu já a visitei.
             
    Ela começa a emanar um brilho de seu corpo. Sensações diversas me envolvem e perco meus sentidos. Não sinto nada, nem felicidade, nem tristeza; talvez isso seja o que chamam de paz.
             
    Volto a enxergar, a escutar, a sentir. Estou novamente debaixo da grande árvore onde conheci Belmira. A chuva, neste instante, está acabando. Posso observar a água escorrer suavemente pelas folhas. Seu som agora é como um tranquilizante.
             
    Espero alguns minutos e me levanto, preparando-me para enfrentar o lamaçal. Meus pensamentos continuam dispersos, sem direção. No entanto, posso dizer que essa vida já não me serve mais.
             

    Cinco anos não é muito tempo.

    - Fim -

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