Escritor da Depressão

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    Prelúdio, por Nicolas M.

    Nicolas Mateus
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    Mensagem por Nicolas Mateus Qui Dez 05, 2013 9:44 pm


    Capítulo 01
    Caminho de Desventuras


    Cavalgaram à passos lentos, muito e ainda mais, por entre as árvores mortas e cobertas de musgo da floresta, tomando um extremo cuidado por onde pisavam. Mas finalmente eles estavam lá, os dois, mãe e filho na Mata Perdida. Se Linda ainda estivesse com seu antigo mapa, ela e Noah nunca conseguiriam sequer ter chegado a metade do caminho, mas felizmente eles encontraram uma hospedaria a alguns metros antes da floresta. O lugar era chamado de Portas do Inferno, um nome pouco convidativo, assim como o prédio em si, ao menos por fora. A hospedaria era toda feita de madeira, e esta tinha ficado meio cinza e meio verde com o tempo, tinha apenas quatro janelas que ficavam na frente, duas embaixo e duas no primeiro andar, nenhuma possuía vidros, apenas a armação de ferro. Uma varanda pequena ficava do lado de fora, coberta por um telhado, e nela dormiam centenas e mais centenas de gatos.

    A dona do lugar chamava-se Henrietta, uma senhora velha e forte de cabelos brancos, olhos meio verde-amarelados, de uma pele morena escura. Ela aparentava ter uns quase sessenta anos, mas seu corpo estava muito em forma para alguém da sua idade. Havia uma certa sabedoria que ela transpassava com o olhar. Henrietta era apaixonada por seus gatos, e eles por ela, mas havia um que andava sempre no seu colo, ou nas suas costas, pendurado nos ombros. Ela o chamava de Senhor Lupin, um gato preto de olhos vermelhos.

    Quando Linda e Noah entraram na hospedaria, não havia ninguém lá além deles, dos gatos e de da senhora Henrietta. Dentro, o local era bem mais aconchegante. Luzes amareladas vinham das lanternas, tinham três grandes sofás na sala principal e um tocador de vinil enchia o lugar com uma bela música. Pouco dinheiro restava para os dois desde que partiram de Porto Pedras, mas a estalajadeira permitiu que os dois permanecessem. Melhor, deu-lhes banho quente e comida também. Além do mapa atualizado da Mata Perdida. Porém não havia sido completamente de graça. Começaram a conversar enquanto jantavam.

    – Poucas pessoas vem até este local, criança – disse Henrietta. – E faz muito tempo desde a última. Ela também era uma mulher, tão bela quanto você, com seus olhos azuis e cabelos castanhos como mel, derramados nestes belos ombros brancos. Mas ela partiu há tempos. Em troca de minha hospitalidade, peço que conversem comigo, só isso. – A voz dela era doce e calma. Senhor Lupin estava no colo dela, esfregando sua cabeça nas mãos de Henrietta.

    – Isso não será um problema, então – Linda disse. – Sobre o quê gostaria de conversar, minha senhora?

    – Oh, não sou senhora nenhuma. Mas como eu disse, poucos são os que vem até este lugar, e não há nada aqui além daquela coisa tenebrosa que fica atrás de minha casa. Vocês não estariam perdidos, é claro. Linda, seu nome é Linda, não é? O que essas duas crianças pretendem fazer naquele lugar?

    – Quando não obteve resposta, a estalajadeira continuou – Certo... obrigá-los a contar está fora do meu alcance. Mas então, diga-me, de onde vocês vieram?

    – Porto Pedras – Linda respondeu. – À sul daqui, muito longe e ainda mais.

    – Muito longe e ainda mais – Henrietta repetiu. – Infernos. Isso só faz com que eu tenha mais curiosidade ainda sobre o que vieram fazer aqui – sorriu e
    olhou para Noah. – Você, rapazinho, que tal me contar?

    – Na verdade... na verdade nem mesmo eu sei o que fazemos aqui – Noah disse. Olhou para Linda com o rosto fechado.

    “Saberá em breve, meu filho, para a minha infelicidade. De um jeito ou de outro, você saberá. Mas até lá você terá de suportar as dúvidas”, ela pensou.

    – Ah, é mesmo? Temos aqui um grande mistério. Mas eu não preciso ser nenhum detetive para saber que vocês querem entrar na floresta.

    – E nós entraremos – disse Linda num tom cortante.

    – Vocês entrarão. Longe de mim impedí-los. Mas deixe-me lhes dar um conselho, crianças. Aquela floresta não é chamada de Mata Perdida pelo que o nome sugere. Sim, podíamos chamar este lugar de O Fim do Mundo, mas não é por isso. É chamada assim porque nenhum dos que nela ousaram entrar conseguiram sair. Não vivos, pelo menos. Deuses! Pensem um pouco, aqui não é conhecido como Portas do Inferno por acaso.

    – E ainda assim, você tem um mapa com cada detalhe dela – Linda rebateu.

    – Oh, eu tenho, tenho mesmo – ela riu.

    – O que implica que você ou alguém precisou entrar lá dentro para mapeá-la. E não me diga que o mapa voltou com um morto, senhora. Como o conseguiu?

    – Ora – Henrietta e Lupin a olharam-na ao mesmo tempo. A pesar de terem cores diferentes, os olhos deles eram iguais. – Do mesmo jeito que conseguiu o seu, minha doce criança.
    Noah interrompeu-as de repente.

    – Você tá ficando maluca, mãe? Ela está nos ajudando. Ajudando, eu disse. Deixe-a em paz, a não ser que tenha encontrado algum outro lugar onde possamos passar a noite quentes e de barriga cheia de graça. – Olhou para Henrietta – Ela pede perdão, senhora, só está cansada da viagem.

    – Temos aqui um garotinho afiado – ela deu uma risada. – Não tema, Noah. Vocês podem ficar comigo o quanto quiserem. São bem vindos aqui. – Mas quando ela se levantou, o gato preto saltou de seu colo e voou na direção do rosto de Noah, deixando-lhe três linhas de sangue no rosto. – Bom... nem todos devem pensar como eu, hohohohohoho. Não seja mal educado, Lupin. Venha.

    Na manhã seguinte, enquanto se preparavam para partir, Henrietta foi até eles, seus gatos seguindo-a por trás. Ela entregou-lhes uma bolsa com comida e água. Olhou para Linda, e desta vez seus olhos estavam tristes, diferentes dos do dia anterior. A velha senhora foi até ela e a abraçou muito forte, tinha um cheiro de gato molhado, o que deveria ser desagradável, mas na verdade era até bom.

    – Você... – ela começou, mas Linda cortou-a.

    – Sim, minha senhora. Eu sei.
    Quando a largou, Henrietta digiriu seu olhar para Noah. Aproximou-se dele e o puxou pela orelha, dando-lhe um doce beijo na testa.

    – Senhor Lupin, venha! – Noah pareceu tão assustando quando o gato pulou que poderia ter morrido do coração ali mesmo. Mas quando ele abriu os olhos novamente, Lupin estava no seu ombro, com um cordão negro e um pingente dourado reluzindo nele. A velha pegou o cordão e o colocou em volta do pescoço do garoto. – É seu. Para dar sorte.

    Noah olhou estranhamente para o pingente.

    – Isso é... o que é isso?

    – Ban-an-Aset – ela respondeu, com um sorriso. – É a Deusa Gato. A Deusa da fertilidade e da proteção. Vê? Ela tem a cabeça do Lupin, mas seu corpo
    é de mulher e em suas mãos ela carrega o sistro, que era usado para acalmar os deuses. Quando estiver se sentindo em perigo, pense nela. Acredite nela. Ela ajudará.

    – Ban-an-Aset... – Quando ele entendeu a história por trás do pingente, seus olhos reluziram em admiração. – Mas... ela não está morta?

    – Os deuses não podem ser mortos, pequeno. Ela vive. Vive nele – apontou para Lupin e o gato lambeu a orelha de Noah. – Vive neles – apontou para os gatos. – E agora vive em você, se aceitá-la – pressionou o cordão contra o peito dele.

    – Vive em mim... Sim – ele disse.              

    – Muito bem – Henrietta estava satisfeita. – Agora, um último conselho. Cuidado ao entrar naquele lugar. Até a primeira curva vocês ainda podem voltar, se quiserem, a saída ainda estará à mostra. Mas depois disso, o único jeito de sair e seguir em frente, para onde pretendem ir. Não pensem que será fácil. Essa floresta é viva. Ela vive, e odeia humanos, e fará o que puder para enganá-los e mantê-los presos lá dentro para sempre. Não importa o que aconteça, o que virem, o que escutarem, o que sentirem, continuem andando. Não parem para olhar, não parem para dormir, apenas continuem. Se derem apenas uma brecha, o jogo acaba. E eu lhes garanto, essa maldita floresta costuma ganhar. – A forma que ela disse aquilo foi tão sinistra que quando ela terminou de falar, os pelos da nuca de Linda estavam todos arrepiados, e ela viu a insegurança trasparecer no rosto do filho. Noah apertou o cordão com a mão. – Escrevi algumas coisas no mapa. Sejam cuidadosos, e quem sabe eu possa vê-los novamente.

    – Certamente nos verá – Linda deu seu melhor sorriso.

    – Assim eu espero. Agora vão. E que Ban-an-Aset esteja com vocês.

    Os dois viraram os cavalos para a direção da Mata Perdida. Quando estavam quase na metade do caminho, entre a hospedaria e a floresta, Linda virou-se e gritou:

    – Obrigado por tudo, Henrietta! – “Por tudo mesmo. Obrigado...!”

    Cavalgaram à passos lentos, muito e ainda mais, por entre as árvores mortas e cobertas de musgo da floresta, tomando um extremo cuidado por onde pisavam. E finalmente eles estavam lá, os dois, mãe e filho, na Mata Perdida, mas felizmente não estavam perdidos. Até ali, nada demais havia acontecido. Escutaram um barulho aqui, um movimento ali, mas os dois sequer falavam sobre isso, achavam melhor fingir não notar e fazer como a velha senhora havia escrito no verso do mapa. “Ignorem e continuem andando.” E assim, finalmente os dois haviam chegado ao local que estava marcado em vermelho no mapa.

    – Chegamos – ela anunciou.

    – Os Caminhos de Hamartáno – Noah disse, enquanto levava a mão ao cordão.

    – Sim, é aqui. Os caminhos das ilusões, das dores e dos sofrimentos. Henrietta estava errada sobre uma coisa, filho. Não era quando entramos, mas sim aqui que devemos tomar cuidado. Lembra-se do conselho dela? Nunca será tão valioso como agora, por isso mantenha-o com você. – Ele assentiu.
    Haviam sete trilhas por onde podia-se chegar no centro da Mata Perdida. E todos esses caminhos davam no círculo de terra batida vermelha onde eles estavam. Estes eram os Caminhos de Hamartáno. Por todos os lados do círculo, grandes árvores mortas, negras e tortas rodeavam o local. Mas nem de longe tão grandes quanto aquelas que serviam para separar um caminho do outro. Àquelas árvores era dado o nome de Lamentações. Nome mais apropriado não havia. Os troncos brancos enormes e grossos de todas as sete Lamentações estavam cobertos de palavras escritas com os mais diversos materiais. Aqui e ali, uma mensagem com sangue, outra feita por aço e assim por diante. Mensagens de morte, de dor e de despedida daqueles que ousaram entrar na floresta e nunca mais acharam o caminho de volta. No meio de cada Lamentação, um desenho grande estava incrustrado na árvore, indicando a qual caminho ela pertencia. Ao lado direito de cada uma das sete árvores principais, estavam os caminhos, e cada um deles era representado por um dos pecados capitais. Eles vieram pelo Gula, ela sabia disso pois, como indicado no mapa, o desenho que correspondia a Lamentação do Gula era uma mulher gorda montada em um bode.

    Em volta do desenho, mais e mais mensagens.

    A Mata Perdida era imensa. Era possível entrar nela por qualquer um dos sete lados, todos dariam no mesmo lugar, caso você não deixasse que a floresta o dominasse. Mas uma vez no centro, as coisas mudavam. Aquele era um lugar mágico. Mesmo que eles tentassem voltar por onde vieram, não encontrariam mais Henrietta e seus gatos. Os caminhos transformavam-se e mudavam de destino lá dentro. Tinha se passado um dia desde que eles saíram das Portas do Inferno, quando ainda era lua nova. Se quisessem voltar, teriam de esperar a próxima lua nova. Felizmente, o lugar para onde eles seguiriam permanecia o mesmo até o quarto minguante, eles ainda teriam mais dois dias pela frente. Porém, nenhum dos dois estava disposto a esperar mais nem um minuto.

    – Acho melhor saírmos logo daqui, mãe. Esse lugar é ruim.

    – Uma mulher cortando o pescoço de um homem – ela disse.
    Os dois procuraram o desenho. Viu os dois homens lutando, o símbolo da Ira. Viu duas mulheres se beijando, símbolo da Luxúria. E então, arrependeu-se de ter começado a olhar da esquerda para a direita. Passou os olhos pelo desenho que ela menos queria ver. Era o único que estava pintado, e ela o odiava: Um homem vermelho esfolado e, ao lado, sua pele branca pendurada numa linha negra. “Inveja”, ela soube.

    – Não entrem no homem esfolado, não converssem com ele, não olhem para ele, sequer pensem nele – tinha dito Henrietta, mais tarde, no dia anterior. Linda arrepiou-se do cabelo às pernas lembrando-se das histórias que ouviu. Então desviou o olhar e os pensamentos dali e então encontrou o caminho por onde seguiriam, o Vaidade.

    – Ali – ela apontou. – Vamos embora daqui, Noah.

    Mãe e filho seguiram em frente, com os cavalos. Tudo estava calmo e silencioso. Os dois cavalos pararam subtamente. Quando Linda olhou para frente, viu um homem sangrando, banhado de vermelho da cabeça aos pés, saindo de trás da Árvore Lamentação do caminho da Inveja. Quando ele se aproximou, ela conseguiu ver a pele esfolada e os ossos dele em algumas partes, estava muito machucado, mas apesar disso, ele ria! O homem ria tão histericamente que poderia morrer. Os cavalos estavam estranhamente quietos, mas Linda e Noah estavam apavorados. Quando o riso cessou, um silêncio mortal caiu sobre eles, e até mesmo a floresta ficou completamente quieta, sem vento, sem movimento, como se tivesse prendido a respiração.

    Linda tinha que fazer alguma coisa, mas estava com tanto medo. “Não. Não posso deixar transparecer minhas fraquezas. Ele é apenas uma ilusão, uma coisa feita por essa maldita floresta para nos enganar”, disse a si mesma. Tomou o lugar à frente de Noah e disse:

    – Eu vou primeiro. Fique atrás de mim e olhe para as minhas costas, só para  elas. – Então ela lembrou-se. – Melhor, olhe para o cordão.

    Foi na direção do homem esfolado. Primeiro ela fechou os olhos, vacilando com cada passo, mas depois abriu-os, lembrando-se que não havia nada a temer. Quando aproximou-se o suficiente, o homem estendeu a mão para ela e a chamou. Ela não deu ouvidos e passou por ele, atravessando seu maldito corpo falso. Noah fez o mesmo.

    – O que a senhora Henrietta disse era verdade – ele disse. – Esse lugar nos odeia, mãe. Ele está tentando nos destruir, nos deixar loucos para escrevermos naquelas árvores brancas gigantes. Nunca deveríamos ter vindo, nunca...

    – Nunca mais deve dizer isso, Noah. Nós não tínhamos escolha.

    Os olhos azuis de Noah estavam entrecobertos por seus lisos cabelos castanhos que herdara dela, mas sua pele morena como a de seu pai estava suada e meio pálida. Mas no momento em que entraram lá, era um caminho sem volta, e ele teria de aguentar. Continuaram andando. A floresta não estava menos quieta do que estava momentos antes. Noah estava agora posicionado à frente dela.

    – Filho – ela começou. – Eu sei que isso deve ser muito complicado. Todas essas mudanças, todas as coisas que já passamos. Você deve pensar que sou uma péssima mãe, e talvez não esteja errado. Mas gostaria que soubesse que tudo isso é para o nosso bem. O seu, principalmente. E esta é a última vez. Depois que nós deixarmos este lugar, tudo ficará bem. Muita coisa precisa ser explicada, e tratarei disso em breve, mas agora, peço que confie em mim, Noah. Você precisa ser forte, nós estamos quase lá.

    – Mãe – uma voz chamou atrás dela. – Com quem você está falando?

    Ela virou-se para trás e o viu.

    “Não. Não pode ser. Não falamos, não tocamos, não demos atenção. Por quê? Por quê? Oh, deuses, nós estávamos tão perto... por quê?”

    Lágrimas subiram aos seus olhos.

    Quando Linda virou novamente a cabeça, Noah não estava mais à sua frente, mas sim atrás dela. E ao lado dele, ela via o reflexo de si mesma. Tentou fechar os olhos e abri-los de novo, na esperança de que aquele pesadelo acabasse. Mas não acabou. Lembrou-se das palavras da velha senhora:

    “– Se derem apenas uma brecha, o jogo acaba. E eu lhes garanto, essa maldita floresta costuma ganhar.”

    Ela tentou pensar em que momento os dois vacilaram, mas já não importava. Estavam presos ali agora, e iram enlouquer lá, enlouquer e depois morrer, com suas dores escritas nas Lamentações. Um arrepio de medo percorreu seu corpo. Por ela, por Noah. E então Linda ouviu-se dizendo:

    – Não há o que se fazer. Agora é tarde demais. – Ficou ali, parada, enquanto as sombras negras da floresta a engoliam e as árvores velhas zombavam dela.

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