Escritor da Depressão

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    Texto: Melissa

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    whatislife63


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    Data de inscrição : 06/05/2013

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    Mensagem por whatislife63 Seg maio 06, 2013 9:46 pm

    Gente, eu já tinha escrito esse texto há uns dois anos, mas decidi reescrever e aumentá-lo um pouco. Queria a opinião de vocês sobre o que eu consegui fazer por hoje.

    “Em algum lugar entre mágoas e espera, vem a chance de ser encontrado por alguém que não tem que ser apenas uma opção, mas a única escolha.” Em algum lugar eu li essa frase e até hoje não consegui tira-la da cabeça. Não por acreditar que isso realmente seja verdade, mas talvez por ser ingênua demais. Acho que eu não consigo pensar nessa frase como verdadeira por causa de tudo o que passei ao longo dos meus dezesseis anos de vida.
    Vou deixar mais claro.
    Meu nome é Melissa Andrade. Moro com a minha mãe, Santana, e com o namorado alcoólatra e drogado dela, Daniel, numa cidade qualquer do Brasil. Até aí, tudo bem. Em qualquer periferia você encontra situações parecidas com essa. Uma mãe adolescente com sua filha e o seu namorado bandido. Mas não moro na periferia e não sou pobre. Pelo menos não tanto.
    Nunca tive a oportunidade de conhecer o meu pai, nem ao menos sei o nome dele. Tudo isso graças ao rancor que a minha mãe guarda em relação a ele. Não tiro muito a culpa dele de ter fugido, afinal, que cara de dezesseis anos de idade quer encarar a responsabilidade de criar uma criança recém-nascida com a namorada?
    Antes que alguém pergunte, não, eu não acredito que exista um deus, nem nenhuma divindade. Se existisse, as vidas das pessoas não seria tão ruim e não existiria esse nível de desigualdade por aí.
    Por sorte, tive a oportunidade de conviver com a minha avó materna por dez anos. Foi a minha avó que me ajudou a manter a sanidade por tanto tempo. Ela quem me criou e que me deu apoio para fazer as coisas que eu precisava. Muito diferente da minha mãe, que só fez fingir que me conhecia por tanto tempo.
    Durante boa parte da minha vida, a minha mãe não conseguia manter um relacionamento sério com ninguém. Em parte porque eu existo, mas por outro lado, tem o fato da minha mãe ser completamente relapsa e não tem a menor condição de administrar a casa que mora só eu e ela, quanto menos um relacionamento de verdade.
    Há quase dois anos ela arranjou Daniel como namorado. No início, tudo parecia ótimo. Ele vinha visitar a minha mãe regularmente, não se importava muito com o fato da minha mãe ter sido mãe muito cedo e era até que legal comigo. Como eu disse, isso foi só no começo. A partir do momento que a minha mãe convidou ele pra morar com a gente, ele mudou radicalmente. Passou a beber e a se drogar com cada vez mais frequência, começou a bater e a estuprar a minha mãe e a fingir pra mim que está tudo bem. Como se eu não percebesse nada.
    Todas as vezes que eu tentei conversar com a minha mãe sobre Daniel, ela dizia que estava tudo bem e que eu estava exagerando quando pedia pra ela ir na delegacia denunciar os maus tratos que ela estava começando a sofrer. Sinceramente, não sei o que dizer o que ainda faz a minha mãe querer ficar com o Daniel. Ela apanha, é estuprada constantemente e quase não o vê sóbrio. Sei dizer quem foi o cara pelo qual ela se apaixonou e se dizer quem é o cara que ela pôs pra dentro de casa. São duas pessoas completamente diferentes.
    Como se não bastasse todo esse pesadelo dentro de casa, na escola não é muito melhor. Moro do lado daquele hospício, não tenho amigos e acredito que nunca vou faze-los. Eu não tenho amigos por um motivo bem simples: eu odeio todo mundo. Isso não é força de expressão. Consigo odiar todos os alunos que estudam comigo. Nenhum deles, em momento nenhum, mostrou qualquer nível de simpatia comigo. Sempre fui considerada a delinquente e a rebelde, mesmo quando eu tinha razão na briga ou discussão.
    O que mais me admira é que ninguém naquela escola pensou que, em algum ponto, eu esteja certa. Nenhum dos alunos com quem eu já briguei tiravam notas boas ou eram disciplinados. Muitas vezes, não eram nenhum dos dois. Ou melhor, nunca tiram notas boas e não são disciplinados. São simplesmente filhinhos de papai que não tem ideia de nada.
    Muitas vezes eu me questiono se isso realmente tinha que acontecer ou se eu realmente tenho muito azar por não ter uma vida de uma pessoa normal. Não que eu queira uma vida cheia de mordomias e completamente vazia. Mas também não queria ter que conviver com um padrasto que suga toda possibilidade de felicidade.
    Não sei se por sorte ou por azar, as minhas aulas recomeçam amanhã. Por um lado é uma sorte, já que eu vou ter uma desculpa plausível para estar fora de casa por um bom tempo. Por outro, é um azar, já que vou ter que encarar aquelas criaturas infernais. Mais uma vez, vou ter que passar um ano estudando naquele inferno.
    Por um lado, agradeço o fato da herança deixada pela minha avó ter sido boa o suficiente pra pagar a mensalidade de uma escola com um ensino decente. De verdade, agradeço. Mas não agradeço ao fato de essa escola ter alunos que não valem nem metade da mensalidade. As perspectivas que eu teria sem esse apoio da herança seriam as piores possíveis. Talvez eu tivesse o mesmo destino da minha mãe – grávida aos dezesseis, morando num bairro de classe média baixa e sem um relacionamento que preste na vida.
    Entendo quando dizem que quem faz o seu futuro é você. Ninguém precisa chegar e me dizer. Por favor. Olha o ambiente em que eu cresci. Eu sei muito bem entender a questão de causa e consequência e que tudo que se é feito tem um retorno. Não é porque eu sou ateia que eu não vou entender esse tipo de coisa. Eu só não preciso imaginar uma divindade me castigando por alguma coisa pra entender esse tipo de conceito.
    Como todas as vezes que eu faço quando eu tenho aula no dia seguinte, sentei na ponta da cama, baixei a cabeça e respirei fundo. Tentei desligar cada terminação nervosa que existe no meu corpo, com exceção dos meus dedos e das minhas mãos. Assim que eu consegui, comecei a mexer os meus dedos de modo que lembrasse os movimentos do piano que estava no outro quarto. Tentei lembrar da música e de seus acordes. Estava tão concentrada que quase era capaz de ouvir a música.
    Quando “toquei” a última nota que eu conhecia na sequência da música, me joguei de costas. Puxei o lençol e me cobri, escutando o barulho irritante do ventilador e os gritos da minha mãe no quarto dela. Provavelmente hoje é o dia da surra. Dá pra perceber pelo que ela grita. “Por favor, Daniel, pare!” são os gritos mais comuns. Provavelmente serão os mesmos gritos que vão povoar os meus pesadelos essa noite. Se eu tiver sorte, não vou ter sonhos. Se eu não tiver tanta sorte, terei um sonho relativo ao hospício. Se tiver a completa falta de sorte, terei que encarar os gritos assustados não só da minha mãe, mas também os da minha avó.
    Antes que eu conseguisse realmente dormir, alguém bate a porta do meu quarto e entra sem nem se importar se estou dormindo ou não. Do jeito que foi feito, deve ser Daniel tentando justificar o injustificável. Fingi estar dormindo da melhor maneira que podia e esperei que ele fosse embora. Para a minha surpresa, não era Daniel, mas a minha mãe. Consegui ouvir o choro fraco dela. Ela começou a passar a mão no meu cabelo.
    - Espero que você nunca passe por isso, minha filha. – ela falou baixinho – Espero que encontre uma pessoa boa pra você. Não interessa quem.
    Ela beijou a minha testa e saiu do meu quarto. Definitivamente, não estou com sorte. Vou sonhar com os gritos e pedidos de socorro da minha mãe. E, como sempre, vou ficar sem reação e só vou ser capaz de acordar quando o despertador tocar. Consegui relaxar e cair num sono profundo mais rápido do que eu esperava.
    Acordei um pouco antes do despertador tocar e, diferente do que eu imaginava, não tive sonhos durante a noite. Comecei a andar pelo quarto procurando a camisa do colégio, uma calça jeans limpa e roupa de baixo. Só consegui encontrar a camisa que tinha um remendo enorme nas costas. Ótimo. Tentei ignorar o fato do remendo ser praticamente as costas inteiras, peguei a única calça que não estava ou pra lavar ou molhada e fui pro banheiro tomar banho.
    Saí do banheiro e fui comer alguma coisa antes de sair. Quando cheguei na cozinha, encontrei a minha mãe preparando alguma coisa no fogão. Ela tinha hematomas na base do pescoço e nos ombros. Eu sabia que, com quase toda a certeza, ela tinha mais pelo corpo, mas a roupa escondia.
    - Oi, mãe. – falei
    - Primeiro dia de aula. Como está se sentindo?
    - Como sempre. Querendo que o tempo passe o mais rápido possível para que eu não precise mais olhar na cara daqueles imbecis e possa entrar no conservatório de verdade.
    Ela se virou e viu que eu estava com a camisa remendada.
    - Tem certeza que vai com essa camisa? Não tem outra limpa? – ela perguntou
    - Só achei essa. Quando voltar eu procuro as outras. E, quando voltar, quero ver as malas com as coisas do Daniel na frente do prédio e ele indo embora.
    - Filha, você sabe que eu não posso fazer isso.
    - Realmente, não pode. Deve. Você já viu seu estado, mãe? Tem mais hematoma do que eu e provavelmente tem as mesmas DSTs que as prostitutas mais disputadas da cidade. E eu sei que não é isso que você quer isso pra sua vida.
    - Você precisa de uma figura paterna.
    - E é aquele bandido que você chama de figura paterna, mãe? A vovó era uma figura paterna melhor do que Daniel. E, se você não quer pensar no seu próprio bem, pense em mim, tá legal? Não aguento mais ter pesadelos com gritos seus e sem poder fazer nada.
    Peguei uma maçã, as minhas coisas e fui pra escola. Atravessei o pátio ainda comendo e soltando olhares venenosos pra quem me olhasse e parecesse querer alguma encrenca.

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