Escritor da Depressão

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    Ponto final.

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    João Jardim


    Mensagens : 1
    Data de inscrição : 23/09/2013

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    Mensagem por João Jardim Seg Set 23, 2013 12:17 pm

    Sérgio observava os passageiros andarem de um lado para o outro na rodoviária. Achou estranho. Há 5 anos estava ali, agora se lembrava disso. Nunca se lembrava de nada, nem do que havia comido no dia anterior, isso se tivesse comido. Era um mendigo conhecido como ‘corujão’, porque dormia pouco. Mal eles sabiam que ele dormia tão pouco porque seu estômago doía de tanta fome.
    As pessoas que passavam por ali o conheciam, elas acenavam para ele; E ele, tão esquecido, tão perdido, acenava de volta e sorria, sem saber o porquê.
    Mas o seu nome era Sérgio. Fazia tempo que não lembrava disso. Então, ali sentado ele se lembrou de sua família. As pequenas e grandes oportunidades que jogou fora, pouco antes de virar um sem teto, suas mulheres, sua filha... Onde elas deviam estar?
    Sérgio se lembrou o quão pretensioso ele era antes de perder tudo. Tinha tanto orgulho, não queria que ninguém o visse trabalhando com algo pequeno, com algo humilde. E foi nessa que ele acabou morando na rua. Com o desemprego veio o excesso de álcool, que preenchia suas noites tristes, e um pouco depois, o éter, que o fazia destoar totalmente daquela realidade cruel.
    ‘É pra aliviar o stress’, ele dizia para sua esposa, enquanto embebia uma toalha com aquele líquido e a jogava na cara. Passava metade do dia bêbado e a outra metade alucinado.
    Um dia sua filha, de apenas 5 anos, estava brincando em sua frente, e ele, bêbado, estava incomodado com isso. Deu um chute na pequena barriga da criança.
    Ele se lembrou disso com muito pesar, ele começou a pensar que teria sido melhor continuar esquecido.
    Sua mulher o largou, é claro, e ele, desempregado, não sabia mais o que fazer. Naquele último mês o seguro desemprego havia o salvo, mas por apenas um tempo, pois o dinheiro se esvaía rapidamente com seus ‘calmantes’.
    Então foi despejado, viveu na rua, e o pouco dinheiro que tinha, ainda utilizava para os mesmos fins. Virou um zumbi.
    Então ele começou a olhar para as crianças que andavam na rua, ele se lembrou como elas olhavam para ele, enquanto seus pais fingiam que ele era invisível. Aquelas crianças não sabiam o que era o inferno da fome, da miséria.
    Mas naquele dia, tão estranho, nem as crianças olhavam para ele.
    Um ônibus parou perto de onde Sérgio estava sentado, várias pessoas desciam, umas senhoras com longos vestidos e a Bíblia debaixo dos braços, casais jovens, pais e filhos...
    Então um senhor distinto desceu por último.
    Um senhor de terno e gravata, chapéu panamá. Ele parecia uma dessas figuras importantes, com os sapatos lustrosos. Ele caminhava se apoiando em uma bengala, que também exibia o seu luxo. Chegava a ser cômico um senhor daqueles descer de um ônibus.
    O sonho de vida de Sérgio era ser rico e usar roupas como aquela, tudo que ele fez durante a vida foi pensando nisso, mas ele não sabia o quão difícil era aquilo, se você não soubesse jogar sujo.
    Começou a fuçar no bolso do casaco, a procura de uma guimba de cigarro, daquelas que as pessoas costumam jogar no chão sem se preocupar, e ele adorava encontrar. Não conseguia encontrar nenhuma.
    Então, alguém estendeu um cigarro para ele. Era aquele senhor. Um cigarro tão distinto quanto seu dono. Feito de papel vermelho e com pequenos detalhes dourados. Nunca tinha visto ninguém naquele lugar com um cigarro daqueles, aliás, nunca viu em nenhum lugar. Aceitou o cigarro.
    -Obrigado.- Ele disse, e o senhor acendeu um fósforo para ele.
    - De nada. – O senhor sorriu. – Eu gosto muito do cheiro de fósforo, e acho que dá um tom diferente para o cigarro, o senhor não acha?
    Alguém conversando com ele e o chamando de senhor? O que havia acontecido naquele dia? Será que ele acordou de um pesadelo?
    -Bom, eu não reparo muita diferença.
    -Pois há. E há quem diga que isso faz mal, mas eu acho que isso o torna melhor ainda. – Ele sorriu.
    Sérgio sorriu para ele, mas de boca fechada. Tinha vergonha dos dentes podres.
    -Posso me sentar ao seu lado? – Ele apontou para a esquerda de Sérgio, e ele não pode disfarçar a reação de estranhamento.
    -Tem certeza? Esse chão está tão sujo, tão imundo...
    -Se você pode, porque eu não posso?- Então aquele senhor sentou ao seu lado.
    Sérgio olhou em sua volta e viu que ainda assim ninguém olhava para ele. Sabia que era invisível, mas aquele senhor, vestido tão bem e sentado no chão, seria impossível não notar.
    - Há quanto tempo o senhor está aqui? – Disse ele, acendendo também um cigarro.
    -Faz uns 5 anos, sabe, e é estranho...
    -O que é estranho?
    -Pois até ontem eu não me lembrava disso, não me recordava nem quem eu era.
    -Ora...- Aquele senhor sorriu. – Então hoje é mesmo um dia especial, não é?
    -Acho que sim.
    Os olhos daquele senhor eram estranhos. Azuis de um tom tão claro quanto possível, assim como sua pele e seu cabelo. Parecia feito de cera, de tão branco que era.
    -Mas como aconteceu essa epifania?
    -Bom, eu acordei e simplesmente estava me lembrando de quem eu era e de tudo o que eu fiz antes. Talvez eu tenha me livrado de algum tipo de trauma, eu não sei.
    O idoso fumou o seu cigarro e expeliu a fumaça pelo nariz, então olhou bem no fundo dos olhos de Sérgio.
    -O senhor tem certeza que acordou, Sérgio?
    Um frio correu por toda a sua espinha, não havia falado seu nome ao senhor e nem entendeu o porquê daquela pergunta.
    -Como assim, isso é um sonho? – Ele perguntou, encarando o senhor com receio da resposta.
    -Não, também não é isso.
    Sérgio olhou em volta e não conseguia entender o que estava acontecendo, então ele gritou, mas ninguém falava nada com ele.
    -Fazia quantos dias que você não comia?
    Sérgio começou a perceber o que estava acontecendo.
    -Há uns 5 dias, meu corpo estava doendo tanto, você não tem noção.
    Então ele chorou e começou a lembrar de como era difícil alguém deixar uma moeda para ele. Era um vagabundo, e as pessoas achavam que ele nem deveria estar vivo.
    -É verdade Sérgio, eu não tenho noção.
    Ele enxugou as lágrimas, não tinha mais motivos para chorar, as dores haviam sumido, pelo menos as físicas.
    -Então o que aconteceu com você, Sérgio?
    -Eu... Morri?
    O senhor sorriu para ele e pôs a mão em seu ombro, mas não disse nada.
    -E o senhor, morreu também?
    Seu rosto, de acolhedor, se tornou simpático, enquanto sorria seus olhos ficavam quase fechados.
    -Não Sérgio, ainda não, eu ainda estou esperando por esse dia.
    Sérgio olhou nos olhos daquele homem. Ele era um tanto estranho para uma pessoa normal, mas não havia maldade em sua aparência, talvez na sua alma, mas em nenhum momento deixou transparecer nem um pouco disso.
    -Então quem é você? Algum médium ou algo do tipo?
    -Não Sérgio. Eu tenho muitos nomes, e muitas pessoas me chamam de muitas coisas, de anjo, de demônio, mas eu gosto de pensar que eu sou um fenômeno manifestado. Eu sou a morte.
    Sérgio se assustou. Já havia entendido que estava morto, mas não pensava que por causa disso veria a morte em pessoa. Sim, em pessoa, pois ela não se parecia nem com um anjo e nem com um demônio. A morte era tão humana.

    A morte sorriu para ele.

    -Sabe, tem algo que me deixou muito curioso na sua história, Sérgio.
    -O que?
    -O que você acha que vai acontecer em seguida?
    Sérgio sorriu, ele já havia passado os últimos 5 anos no inferno, será que Deus escolheria um lugar pior do que aquele para ele descansar?
    A morte se levantou, e estendeu a mão para que Sérgio também se levantasse.
    -Bom, eu não sei. Pra onde eu vou? – Ele disse, sorrindo.
    A morte fez uma cara de desapontada. Ele se assustou por um instante, pensado que ouviria a terrível notícia de que passaria a eternidade no inferno. Talvez realmente passasse.
    -E você acha que eu sei?
    A morte sorriu para ele, e o abraçou. Sérgio também abraçou a morte e sorriu. Sentiu toda a tristeza escorrendo de seu corpo e então ouviu asas se batendo, enquanto tudo escurecia.

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