Escritor da Depressão

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    Novaya O Legado [Trecho]

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    Mensagem por Novayan_ Sex Set 05, 2014 1:29 am

    [...]

    Voltei à cadeira lustrosa, as mãos sobre a testa demarcavam os limites da minha sobriedade. Sabia que em algum lugar havia amigos esperando-me, que seus nomes eram... E vieram de... Parecia saber mais da vida ali dentro do que quando entrara. Mesmo intrinsecamente confusa, a vida nunca lhe parecera tão nebulosa quanto agora.
    - Eu sou Mary.
    - Mary; como Marte.
    - Como Marte.


    Ela prostrara sob meus joelhos num pedido quase animalesco por atenção. Mirava-me com os olhos manchados e brilhantes como as estrelas que se alinhavam no vácuo. Mary era mais que estrela, em seus olhos a miríade caprichosa fomentava constelações e riquezas. Era fácil se esconder atrás da alcunha de prostituta, mesmo nua permanecera protegida por um disfarce quase intangível e só percebido em momentos como aquele, com ele agora.

    Juntam-se as mãos, entrelaçam-se fortemente os dedos, escalando os corpos um do outro da cadeira e do chão em direção aos céus e aos beijos. Não há rima, lira ou sutileza, não há pensamento, riso ou descrença. Não há amor. Apenas o objeto, o objetivo impérvio, martelando contra as coxas que se abrem convidativas e frouxas, sobre uma nova e revigorante paleta de cores; negra, branca, vermelha e roxa. Um beijo convulsivo sobre os nervos já excitados e loucos. Um beijo doentio sobre as nádegas flácidas, rosadas e gordas. Um gesto convidativo, que extirpa da rosa o espinho, chama e mantém a violenta dança na horizontal... O mal doravante ao sexo, de fato oblitera no pobre mortal toda vida, certeza e ciência. Como é lindo e róseo este Caos.

    Quando pude reaver o fôlego percebi o quão tarde era. O torpor remanescente do último êxtase debandava lentamente como nos últimos acordes de um soneto fúnebre. Estava de um modo estranhamente confuso me sentindo mais vivo, os sentidos aguçados recobravam suas funções, percebendo entre os lençóis manchados e quentes aquela figura misteriosa e indecente.

    Repousei a cabeça ao seu lado, certamente pela última vez, assistindo pausadamente o fôlego também reaver aquele dorso alvo e pontilhado pelo suor como estrelas. Não estava certo o porquê, mas intimamente sabia que não poderia ou haveria de existir um depois, aquele ato inconsequente, indecente, violento e perturbado seria o último com ela.

    Em momentos como estes, raros, onde pode se perceber os augúrios da despedida, é recomendando como eu fizera, que se deite e pense, que se despesa com certa empatia. Minutos podem parecer horas mesmo em momentos bons e desconcertantes como este; basta ter, como dito, empatia pelos olhos, pelo suor, pelo fôlego. Imaginar-se percorrendo novamente aquele dorso, desta vez com um semblante menor, mais humilde e apropriado a toda aquela perfeição hedonista, fria e indecente. Perfeitamente imperfeita. Deveras caótica e única.

    Sorvi de seus lábios o último gesto indecoroso, num último desejo ácido que não poderia mais ser velado por minhas apreensões. Ela não resistiu, sorriu ou se desfez em lágrimas. Se possuía algum sentimento por mim, ele só poderia ser refletido por mim mesmo; no meu andar cambaleante em direção as roupas, no meu último trago do alento que me esperou paciente sobre a cabeceira, na minha despedida muda, porém sincera, de alguém que jamais soubera o que é o amor.

    Toda a agitação odiosa da festa foi silenciada pela minha mente anestesiada, mesmo o reboar da música e de suas musas pecaminosas me passaram em contraste ao acontecido, completamente distante; desapercebido. Segui com aquele nó em minha garganta por um longo período. Onde estavam meus amigos?

    O asco apenas se precipitou com o empurrão amargo de outras bebidas, outros venenos. Quisera eu entender o que era ser um cientista, tal como ela, uma verdadeira artista, ardilosa tirana que me dobrara sob a cama a mercê de seus caprichos cruéis; meus desejos e súplicas.
    Afinal, isto é ser humano?

    Meu apartamento é uma cela. Muito mais ampla que minha mente absorta à janela. Do alto da torre vi milhares de passos confusamente coordenados, tomando a forma daquilo que se consagrara pródigo. Jamais me lembrei de algum período onde estivesse com tamanha ânsia em compreender o mundo. Estive em Marte por alguns dias e agora a paisagem erma e sufocante me inspirava e aprisionava na mesma proporção insana.

    Repousava durante as noites com a cabeça sob um caderno vazio, ao lado de uma garrafa e um copo igualmente vazios, que exalavam um perfume seco e agridoce quase iguais aos meus. Tanto me perturbava, me assolava e desmantelava, era como se jamais tivesse sonhado ou sentido, como se de repente houvesse acordado para um horizonte infinitamente maior e maligno. Tive medo. A própria menção do sentimento já me assustavam, anteriormente eu fui como ferro agora assisti essa nova chama cruel atormentar-me, dobrar-me em minha própria sala, derretendo-me sobre o caderno velho.

    Percebi que meus olhos já não piscavam com a mesma frequência e o halito já não embaçava o vidro distante. O pensamento sobre a morte e o que significava a vida perante este contraste extremo, me extinguiu os desejos finais. Atrás de mim havia um mundo incrivelmente coordenado, que embora assim fosse, nenhuma de suas partes compreendia os seus desígnios na enorme máquina. Cada engrenagem suspirava e cedia, então novamente subia e perpetuava aquele movimento constante e confuso, algumas vezes alegres, outras vezes difusos, num resfolegar de faíscas, sangue, suor e lágrimas. Tudo terminava em lágrimas, da mesma maneira com que se iniciara.

    Como poderia me contentar com prazeres tão efêmeros? Que a despeito de sua grandeza momentânea, ainda são perenes, vazios e secos? Minha boca tragava de minha própria derrota, absorvendo de cada garrafa, cada gota de veneno libertador. Dormia para esquecer, enquanto a aurora insistia em trazer-me o sonho, na doentia insanidade que se prestava à vida.

    Não era somente o medo que me desmantelava, mas minha incapacidade de me compreender. Por que me sentia assim?! Minha boca balbuciava mentiras, verdades grotescas e historias há muito esquecidas. Frente ao espelho via-me derreter, ceder sob a chama aterradora que me consumia, de dentro para fora expondo minha carne enegrecida.

    Houve quem pregasse sobre o amor, mas mesmo este era tido efêmero pela concepção que eu construira aquela noite. A busca por poder; o direito inato de cada ser vivente, cada argumento ridículo e deturpado, por mentes tais quais a minha que um dia se viram ameaçados. Vicejaram desta forma toda sorte de ironia, todo argumento que pudesse mantê-los comodamente livres e relaxados, de modo que a vida pudesse ser tida como uma dádiva e não como uma maldição.

    Dias se passaram até minha mente então repousar, meus olhos há muito já haviam se fechado, demasiadamente cansados, se voltaram para dentro em busca da luz interna. Se não havia sentido para a vida o que me proibia, me restringia, me segurava? Absolutamente nada. Se nada existe ou importa, se tudo é passageiro e se esgota, viverei do efêmero tal qual minha rosa; Mary.

    [...]


    Raphael Godinho
    Aline.Carvalho
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    Mensagem por Aline.Carvalho Qua Jan 21, 2015 3:17 pm

    Uau, que forte!

    Gostei da forma como você colocou as palavras, em alguns pontos eu teria escrito de formas diferentes, mas você conseguiu manter o ritmo até o final.

    Parabéns, quanto à história em si...aguardo por mais.

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