- Mandou me chamar, senhor Intendente? – Adentrou a jovem secretaria na Câmara-Vermelha.
- É evidente senhorita Harmony, você jamais ficaria um minuto se quer na minha presença, se não fosse estritamente obrigada.
Alice engoliu em seco o disparate típico, aprumando as costas contra a segurança imaginaria e inexiste. O ambiente frio retesava lentamente os pequenos pelos de seus braços, não mais que aquela voz estremecia a chama de sua alma.
- Sou um homem muito atarefado Alice, talvez o mais atarefado deste planeta. Não é por acaso que preciso de tantas pessoas a minha volta, pessoas de confiança. Por isso é melhor que ouça bem. – O Intendente meneou a cabeça em direção a uma poltrona próxima, os olhos penetrantes resistindo sobre a moça até que esta se sentasse, até que ele enfim sorrisse.
- Preciso que você saiba que eu não sou o monstro que seu imaginário criou. Que minhas ações, embora duvidosas, sempre nos levaram a solução de problemas bem sérios. Que se não fosse por mim, sujando minhas próprias mãos, toda a colônia não poderia existir, nem mesmo para criticar todos estes meus erros loucos. Se não fosse por homens assim, e você bem sabe, a humanidade não teria chegado aonde chegou.
- Pois talvez não devêssemos ter chegado mesmo. – Encarava-o.
- Seu idealismo é admirável Alice. – Debochava, respondendo a altura o olhar com animosidade. – E talvez ele tenha seus propósitos em tempos de paz, diplomacia e sonhos. Aqui não Alice. Ouça bem, aqui não.
Johnatan Irons avançou contra a jovem secretária, antes mesmo que a expressão de surpresa pudesse lhe ascender aos olhos. Debruçado sobre a poltrona da jovem, cara a cara, condensou sua cólera num único olhar cerrado de profunda calma e inquietante desdém.
- Ouça bem minha jovem. Um homem que já tenha sujado tanto as mãos, como você mesma diz, não se prenderá a mais um pequeno pecado. – Circulou o pescoço branco da mulher a sua frente, com os dedos frios, enroscando-se como serpentes. – Seu pescoço é frágil; não condiz com seu espírito forte e sua natureza ousada. Seu corpo inteiro é frágil, moldado para outras tarefas, assim como sua língua certamente não fora feita para sibilar e trair seu povo. Então me diga, para quê sua língua foi feita?
Meses de subterfúgios e armadilhas passavam diante de seus olhos febris, transbordando. Via-o sempre audacioso, prepotente e inteligente, suplantando suas fugas com risos, atraindo-a para seus dedos frios e violentos. Seus olhos não resignavam mais nada do brio de outrora, carregava consigo somente a escória, perpetrada por sua língua que chamuscava entre os dentes. Estava ali ante as garras do caçador, a presa. Ante aos olhos da fúria, os seus resplandecentes de dor. Harmony engasgava-se entre o fôlego extinto e as palavras silenciadas. Era frágil.
- Está querendo me dizer algo é? Talvez alguma de suas crenças tão ferrenhas, ou quem sabe alguma nova linha inteligente e acusadora. Não? Ou quem sabe implorar como uma puta por desculpas, que tal?!
Irons desfez abruptamente o enlace sob o pescoço da loura. Seus dedos, no entanto, continuaram impressos em sangue sob a pele pálida e suada. Resfolegava descompassada, atemorizada, com olhos torpes e desfocados.
- Implore Alice, implore pelo meu perdão. Não quero acabar com um amor tão bonito quanto o nosso. – Irons empertigou-se novamente, tomando-a por uma das mãos e sorrindo. – Lembra-se quando a salvei pela primeira vez? Como o satélite do pobre camarada russo, explodiu nos céus como 4 de Julho? Você estava tão bonita naquele traje espacial, me xingando e ameaçando, dizendo o quão insano eu era e todas aquelas ações não seriam esquecidas. Lembra-se? Lembro-me como ontem; você usou a palavra “canalha” várias vezes, eu deveria tê-la matado naquele dia, junto com os cosmonautas em orbita, mas meu amor por você foi tão grande. Tão grande!
- Você é louco.
- Sim! Sou! Você tinha me dito isto também. Disse que a Terra toda saberia, que eu seria fuzilado e os meus restos postos em orbita para todo o sempre. Não foi? Agora, depois de meses, guerras e reconquistas, depois de vermos a própria Terra em ruínas, quem diria. Nada me aconteceu. Nada meu amor. Nada!
Harmony continuou com os olhos pausados sobre o chão, recordando os bilhões de vozes que se extinguiram, e toda a dor perpetrada por tiranos como aquele. Suas mãos cerradas tremiam, convulsionavam de cólera e dor. Era frágil, era a última. Era talvez a única conquista que jamais poderia ser tomada por ele.
Sorriu, e por fim cuspiu sobre Irons todo o seu asco e veneno.
- É para isto que serve minha língua seu escroto! Foda-se!
Irons fechou os olhos resignado, pousou as mãos lentamente sobre um dos bolsos da calça e arrancou uma faca de lâmina dentada.
- É para isto que ela serve? Receio que teremos de arrancá-la agora então.
A faca mergulhou impetuosa contra a boca aberta; escancarada de horror. Cada serrilha perfurando uma parte da carne, desligando-a do corpo, desfazendo-a em sangue e gritos circunscritos. Irons segurava-a firmemente pelos cabelos, esbofeteando o rosto languido da secretaria sempre que engasgava-se com o próprio sangue. Mas a lamina não saía, contra sua carne vermelha e inchada investia cada pequena serrilha. Novamente, e de novo, e de novo.
Por fim o músculo escorreu do interior da boca para à vista dos olhos. Olhos cerrados de horror e frieza.
- Você pode abrir os olhos agora amor. Veja o que consegui. Veja! – Irons brandia a língua recém-cortada e sanguinolenta para a jovem. A outra mão ainda empunhando a arma, vermelha e brilhante contra a luz que chegava difusa em seus olhos cobertos de lágrimas.
- Expurguei de sua bela carne a traição. Você está livre para servir-me sem mais dúvida ou rebeldia, nenhuma mentira será novamente proferida. Sua língua é minha para servir-me com toda obediência e prazer que mereço.
Alice debelava inutilmente à torrente de sangue que descia da boca, escorria do torso, cingindo todo o ventre vermelho; pingando por dentre as coxas pálidas. Toda raiva e obstinação haviam sido de fato, extirpados dela pela lamina cega. Seus sentidos minguavam, esmoreciam, enquanto ameaçava desmaiar pela violência.
- Senhorita Harmony, eu não lhe dei permissão para partir ainda, você é minha, preciso de você aqui. – O intendente devolvera a lamina ao fundo do bolso, e a língua sobre uma das mesas. Abraçava-a paternalmente enquanto o próprio peito tingia-se com sangue escuro. Revolveu seus cabelos loiros, beijando-a serenamente na testa, e depois na boca semiaberta.
- Eu te amo senhorita Harmony. Quando perceber isto, devolverei a sua língua e poderá me dizer o quanto me ama também. Até lá, vou deixá-la em minha segurança, está ali sobre a mesa, veja.
Seu olhar pendia desfocado sobre o chão. Perscrutava, sem ouvir, o ritmo descompassado de seu fôlego e do gotejar dantesco de seu sangue sobre o colo de seu agressor. Onde estava? O que havia de errado com ela? Lembrava-se de uma face indecorosa e sorridente, sibilando muito próximo a sua. Falava sobre traição, extermínio e uma suposta justiça que ameaçava condenar a todos. Condenação; perpetrada por um beijo úmido de sangue da mesma boca inescrupulosa, de uma faca cega e serrilhada, de uma promessa de amor que não significava nada.
- Vou cuidar de você agora.
Se soubesse o que aquelas palavras significavam, ou a quem elas se dirigiam... O mundo era todo horror, e entre os braços da Fera, ela enfim sonhou.
...
Raphael Godinho
- É evidente senhorita Harmony, você jamais ficaria um minuto se quer na minha presença, se não fosse estritamente obrigada.
Alice engoliu em seco o disparate típico, aprumando as costas contra a segurança imaginaria e inexiste. O ambiente frio retesava lentamente os pequenos pelos de seus braços, não mais que aquela voz estremecia a chama de sua alma.
- Sou um homem muito atarefado Alice, talvez o mais atarefado deste planeta. Não é por acaso que preciso de tantas pessoas a minha volta, pessoas de confiança. Por isso é melhor que ouça bem. – O Intendente meneou a cabeça em direção a uma poltrona próxima, os olhos penetrantes resistindo sobre a moça até que esta se sentasse, até que ele enfim sorrisse.
- Preciso que você saiba que eu não sou o monstro que seu imaginário criou. Que minhas ações, embora duvidosas, sempre nos levaram a solução de problemas bem sérios. Que se não fosse por mim, sujando minhas próprias mãos, toda a colônia não poderia existir, nem mesmo para criticar todos estes meus erros loucos. Se não fosse por homens assim, e você bem sabe, a humanidade não teria chegado aonde chegou.
- Pois talvez não devêssemos ter chegado mesmo. – Encarava-o.
- Seu idealismo é admirável Alice. – Debochava, respondendo a altura o olhar com animosidade. – E talvez ele tenha seus propósitos em tempos de paz, diplomacia e sonhos. Aqui não Alice. Ouça bem, aqui não.
Johnatan Irons avançou contra a jovem secretária, antes mesmo que a expressão de surpresa pudesse lhe ascender aos olhos. Debruçado sobre a poltrona da jovem, cara a cara, condensou sua cólera num único olhar cerrado de profunda calma e inquietante desdém.
- Ouça bem minha jovem. Um homem que já tenha sujado tanto as mãos, como você mesma diz, não se prenderá a mais um pequeno pecado. – Circulou o pescoço branco da mulher a sua frente, com os dedos frios, enroscando-se como serpentes. – Seu pescoço é frágil; não condiz com seu espírito forte e sua natureza ousada. Seu corpo inteiro é frágil, moldado para outras tarefas, assim como sua língua certamente não fora feita para sibilar e trair seu povo. Então me diga, para quê sua língua foi feita?
Meses de subterfúgios e armadilhas passavam diante de seus olhos febris, transbordando. Via-o sempre audacioso, prepotente e inteligente, suplantando suas fugas com risos, atraindo-a para seus dedos frios e violentos. Seus olhos não resignavam mais nada do brio de outrora, carregava consigo somente a escória, perpetrada por sua língua que chamuscava entre os dentes. Estava ali ante as garras do caçador, a presa. Ante aos olhos da fúria, os seus resplandecentes de dor. Harmony engasgava-se entre o fôlego extinto e as palavras silenciadas. Era frágil.
- Está querendo me dizer algo é? Talvez alguma de suas crenças tão ferrenhas, ou quem sabe alguma nova linha inteligente e acusadora. Não? Ou quem sabe implorar como uma puta por desculpas, que tal?!
Irons desfez abruptamente o enlace sob o pescoço da loura. Seus dedos, no entanto, continuaram impressos em sangue sob a pele pálida e suada. Resfolegava descompassada, atemorizada, com olhos torpes e desfocados.
- Implore Alice, implore pelo meu perdão. Não quero acabar com um amor tão bonito quanto o nosso. – Irons empertigou-se novamente, tomando-a por uma das mãos e sorrindo. – Lembra-se quando a salvei pela primeira vez? Como o satélite do pobre camarada russo, explodiu nos céus como 4 de Julho? Você estava tão bonita naquele traje espacial, me xingando e ameaçando, dizendo o quão insano eu era e todas aquelas ações não seriam esquecidas. Lembra-se? Lembro-me como ontem; você usou a palavra “canalha” várias vezes, eu deveria tê-la matado naquele dia, junto com os cosmonautas em orbita, mas meu amor por você foi tão grande. Tão grande!
- Você é louco.
- Sim! Sou! Você tinha me dito isto também. Disse que a Terra toda saberia, que eu seria fuzilado e os meus restos postos em orbita para todo o sempre. Não foi? Agora, depois de meses, guerras e reconquistas, depois de vermos a própria Terra em ruínas, quem diria. Nada me aconteceu. Nada meu amor. Nada!
Harmony continuou com os olhos pausados sobre o chão, recordando os bilhões de vozes que se extinguiram, e toda a dor perpetrada por tiranos como aquele. Suas mãos cerradas tremiam, convulsionavam de cólera e dor. Era frágil, era a última. Era talvez a única conquista que jamais poderia ser tomada por ele.
Sorriu, e por fim cuspiu sobre Irons todo o seu asco e veneno.
- É para isto que serve minha língua seu escroto! Foda-se!
Irons fechou os olhos resignado, pousou as mãos lentamente sobre um dos bolsos da calça e arrancou uma faca de lâmina dentada.
- É para isto que ela serve? Receio que teremos de arrancá-la agora então.
A faca mergulhou impetuosa contra a boca aberta; escancarada de horror. Cada serrilha perfurando uma parte da carne, desligando-a do corpo, desfazendo-a em sangue e gritos circunscritos. Irons segurava-a firmemente pelos cabelos, esbofeteando o rosto languido da secretaria sempre que engasgava-se com o próprio sangue. Mas a lamina não saía, contra sua carne vermelha e inchada investia cada pequena serrilha. Novamente, e de novo, e de novo.
Por fim o músculo escorreu do interior da boca para à vista dos olhos. Olhos cerrados de horror e frieza.
- Você pode abrir os olhos agora amor. Veja o que consegui. Veja! – Irons brandia a língua recém-cortada e sanguinolenta para a jovem. A outra mão ainda empunhando a arma, vermelha e brilhante contra a luz que chegava difusa em seus olhos cobertos de lágrimas.
- Expurguei de sua bela carne a traição. Você está livre para servir-me sem mais dúvida ou rebeldia, nenhuma mentira será novamente proferida. Sua língua é minha para servir-me com toda obediência e prazer que mereço.
Alice debelava inutilmente à torrente de sangue que descia da boca, escorria do torso, cingindo todo o ventre vermelho; pingando por dentre as coxas pálidas. Toda raiva e obstinação haviam sido de fato, extirpados dela pela lamina cega. Seus sentidos minguavam, esmoreciam, enquanto ameaçava desmaiar pela violência.
- Senhorita Harmony, eu não lhe dei permissão para partir ainda, você é minha, preciso de você aqui. – O intendente devolvera a lamina ao fundo do bolso, e a língua sobre uma das mesas. Abraçava-a paternalmente enquanto o próprio peito tingia-se com sangue escuro. Revolveu seus cabelos loiros, beijando-a serenamente na testa, e depois na boca semiaberta.
- Eu te amo senhorita Harmony. Quando perceber isto, devolverei a sua língua e poderá me dizer o quanto me ama também. Até lá, vou deixá-la em minha segurança, está ali sobre a mesa, veja.
Seu olhar pendia desfocado sobre o chão. Perscrutava, sem ouvir, o ritmo descompassado de seu fôlego e do gotejar dantesco de seu sangue sobre o colo de seu agressor. Onde estava? O que havia de errado com ela? Lembrava-se de uma face indecorosa e sorridente, sibilando muito próximo a sua. Falava sobre traição, extermínio e uma suposta justiça que ameaçava condenar a todos. Condenação; perpetrada por um beijo úmido de sangue da mesma boca inescrupulosa, de uma faca cega e serrilhada, de uma promessa de amor que não significava nada.
- Vou cuidar de você agora.
Se soubesse o que aquelas palavras significavam, ou a quem elas se dirigiam... O mundo era todo horror, e entre os braços da Fera, ela enfim sonhou.
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Raphael Godinho